segunda-feira, 23 de junho de 2014

Isto não é uma crítica à MOL 2014

A marcha é, simbolicamente, o dia mais importante do ano para as pessoas LGBT* (e sim, é importante não esquecer que a relevância maior é a das nossas acções, vozes e pequenos gestos do dia-a-dia, das invisibilidades ou "tolerâncias" que temos porque temos pressa, porque não nos queremos chatear, porque fazemos de conta que são piadas, porque muitas vezes não conseguimos por razões várias falar, reagir, contestar). É desanimador ouvir e ler comentários depreciativos, especialmente quando vêm de pessoas que não desfilam, que não participam, que não sentem ter um dever em lá estar – nem me estou a referir exclusivamente às bichas cobardes (termo cunhado pelas fadas corajosas), mas também a pessoas que não entenderam ainda a relevância social e política de dar a cara contra discriminações e fobias - mas que estão prontas para tecer julgamentos sobre a ineficácia e fragmentação dos movimentos LGBT*.
A incompatibilidade de discursos e posições não é um problema. A marcha não tem que ser o evangélico momento de união das comunidades LGBT*. É bom que haja divergências, é bom que haja desentendimentos. É bom e expectável que haja movimentos hegemónicos, mais institucionais, mais conservadores, e outros contra-hegemónicos. E não me interpretem mal, é bom que haja críticas também - tudo isto reflete que somos mesmo muitas e diversas e que há pessoas atentas com capacidade de auto-reflexão e que também há pessoas que não se identificam com as causas (embora isto faça muita comichão, mas seria toda outra discussão). No meio disto vai havendo algumas coisas que custam a entender, como as Panteras Rosa, colectivo que faz parte da organização, terem incluído no seu discurso de fim de marcha críticas a opções da organização, nomeadamente à imagem da festa de encerramento da marcha e à própria festa em si. Ou como a ILGA, que estava inscrita para discursar no final da marcha, mas que decidiu, em cima da hora, não o fazer. As intervenções do final da marcha são importantes, são momentos-chave de visibilidade que traduzem em palavras o que nos faz marchar. 

(Parêntesis sobre a festa de encerramento)
É facto que €4 de entrada não é um preço inclusivo - não há muito que possa argumentar aqui, além da contribuição necessária para que a marcha melhore no próximo ano, para suportar os gastos que este ano houve. A festa acaba por não estar acessível a todas as pessoas e não é claramente a solução ideal. Ou seja, da próxima vez seguramente que se tentará fazer diferente.
É facto que o cartaz apresenta problemas, mesmo tentando transformar a opressão em inclusão, mesmo tentando ser uma ressignificação e perturbação dum símbolo colonial, patriótico, patriarcal e classista. Mas este cartaz é trabalho de uma pessoa que se voluntariou para contribuir para este momento simbólico! De uma pessoa que a troco de nada teve uma ideia e se dedicou a ela! E esta ideia foi acolhida e adoptada e elogiada. E nem sequer vou incluir desculpas como: não havia tempo para mais nem para diferente, não acho que sejam necessárias aqui e agora. 
Quer queiram, que não, a imagem é perturbadora, a vários níveis. Não é brilhante ter apenas duas mulheres e estas estarem lá como mães, segundo a ordem patriarcal - e sobre outras questões como as raciais e trans*, por exemplo, não me pronuncio pois não me sinto com legitimidade para o fazer e prefiro ouvir quem se possa manifestar por elas. E é problemático, bem o sabemos, o monumento a ser queerizado ser o padrão dos descobrimentos porque é colonialista, porque é salazarento, porque é patriótico, patriarcal, etc, etc, etc. Mas temos que pensar para fora das nossas nuvens (que é no que tentamos transformar as caixinhas em que querem que estejamos) LGBT*. Infelizmente muita gente interpreta a imagem como ofensiva, mas por motivos completamente diferentes dos que nós (e incluo-me sem falsas modéstias numa elite LGBT* crítica) vemos. Muita gente vê ali uma ofensa a Portugal, à "memória", à "história", muita gente vê ali um bando de doentes, um bando de macacos, um bando de malucos a destruir uma ideia de pátria, de nação, de património. E não é isto que move parte de nós: perturbar estas pessoas? Fazer estas pessoas pensar? Confrontar estas pessoas com diversidades e diferenças? Mostrar a estas pessoas que existimos e que estamos a reclamar os espaços delas, que queremos transformar os espaços delas, as ideias delas?
(fim de parêntesis)

Da participação na marcha.
De um lado ouvem-se as críticas às privilegiadas elitistas e autocentradas que, como dizem as bichas, e bem, vão à marcha de Madrid, mas aqui só saem no escuro porque não são “activistas". Do outro, apontam o dedo aos "extremismos" e "radicalismos" das esquerdas, a quem escolheu um slogan "demasiado político".
Sim, há conclusões a tirar sobre a falta de mobilização, sobre a diminuição de afluência. Mas se calhar, mais do que trocarmos culpas, devemos perceber o contexto repressivo que nos mostra, cada vez mais, que os medos estão instalados, vários: os medos de perder o emprego em quem o tem, os medos de não conseguir emprego, os medos dos desentendimentos familiares, ser expulsa de casa em subsistência precária é um risco eminente, viver num ambiente repressivo por não ter como subsistir é uma realidade para grande parte de nós. 
Assim se percebe que quem dê a cara sejam as mesmas pessoas, que são em grande medida pessoas privilegiadas, mesmo as que não tem emprego, como eu (e que por isso mudo de país brevemente; mas eu tenho a sorte de ser branca, física, mentalmente lida como funcional, de ter uma mãe que me consegue ainda ajudar a subsistir, de ter algum mérito pessoal que também é resultado destas últimas questões), mas sei que uma grande parte, senão a maior, das pessoas LGBT* está em sítios bem mais precários e com muito menos soluções, e com problemas urgentes: habitação, cuidados de saúde. Sei, e acredito que as pessoas que colaboraram na organização desta marcha também sabem, que há quem não esteja presente literalmente porque não pode. Porque os medos, os riscos são demasiados e há vidas, muitas, demasiadas (e mesmo que fossem poucas seriam demasiadas), em risco. E é nestas pessoas que temos que pensar quando estamos a marchar com orgulho. A marcha é uma manifestação de orgulho, um dia em que podemos festejar-nos em liberdade, mas é também e sempre, política e não pode deixar de o ser. E por isso o lema deste ano, e por isso o descontentamento com quem pode e tem o dever de lá estar e não está. E por isso as voltas no estômago quando oiço que a marcha devia ser uma festa inclusiva que agrade aos centros e às direitas, e não uma manifestação. Isso é viver na bolha da cegueira estrutural. É ignorar que as causas das opressões LGBT*, sexistas, racistas, de classe, etc, são as mesmas.

Esta sensação que os medos de dar a cara estão a crescer (contrariamente ao que se esperava há alguns anos atrás) é muito perigosa e só prova que temos, cada vez mais, que continuar a lutar. Que é importante reagirmos aos Marinhos Pintos e que a invisibilidade dos debates LGBT* (ou os falsos sinais de mudança, como a Conchita) são reflexo de mais prejuízo, de mais marginalização, de mais auto-repressão e auto-censura (e não de maior aceitação e “tolerância” como muitas pessoas afirmam). Que é preciso levarmos as nossas vozes a mais pessoas e mais longe (às crianças e jovens que nascem em contextos familiares em que, muitas vezes mesmo no centro de Lisboa, acham que têm filhas e filhos doentes), que é preciso ocuparmos espaço, que é preciso fazermos coisas, que é preciso, no fundo, estarmos investidxs em vontades de mudar, de transformar, de reinventar, que nos ajudem a estar no mundo como pessoas e com pessoas.

Portanto importa o colectivo, sim. Mas não o dos consensos ou ausência de críticas, antes o diversificado. O colectivo diversificado engloba mulheres, engloba todas as cores de pele, formato dos olhos, das orelhas, dos narizes e das barrigas, engloba todas a orientações afectivas e sexuais, engloba todas as orientações relacionais, engloba todas as identificações e representações de género. Fazer em função dele, falar em função dele – o que só acontece na e com a pluralidade. Quantas mais pessoas estiverem envolvidas e se fizerem ouvir em ocasiões como estas, mais representativas estas serão. E assim conseguimos ver, ouvir e conhecer sempre mais e melhor e também melhor pensar, decidir, fazer.

Helena Lopes Braga

Nota – este texto reflecte a opinião da autora, não pretendendo ser representativo do colectivo actiBIstas. 

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